domingo, 3 de maio de 2015

Bath - estrutura de ataque

O Bath de Mike Ford tem estruturas de ataque incríveis e são a equipa com a ideia de jogo mais interessante da Aviva Premiership.

Uma das mais eficazes e simples - não por acaso - é a utilização de 3 atacantes curtos, na zona do Guarda/Poste/3.º homem e comandante de subida da linha defensiva, alinhados como num "power" típico de Gales ou Austrália 2010, e com um penetrador/manobrador nas costas, que identifica o espaço criado e penetra.



Exemplo perfeito: minuto 1:16 do vídeo em baixo (repare-se na linha e tempo de Ollie Devoto, mas também no apoio perfeito do ponta fechado, Rokoduguni e da aproximação do centro Kyle Eastmond, convergindo no apoio para o ponto de penetração. Poesia em movimento).


Alternativamente, o penetrador (que jeito dá ter George Ford) pode transformar-se em distribuidor, e jogar no segundo plano, que deve estar alinhado com o tempo de recepção e passe do penetrador/distribuidor, certificando-se que não lateralizam linha de corrida, preservando a verticalidade necessária para manter a defesa concentrada ou atacar os espaços de uma defesa estendida.

Armitage (e Abendanon): tempos de opinião

Eddie Butler, cronista do "The Guardian", juntou a sua voz ao coro de opiniões que reclamam a presença de Steffon Armitage, e também de Nick Abendanon - embora os dois casos sejam distintos, na minha opinião - nos eleitos de Stuart Lancaster para o Campeonato do Mundo.

Restam poucas dúvidas que Armitage é um dos melhores jogadores do mundo, e um "7" singular. Com a acção sobre a bola de McCaw ou Pockock, o jogo de continuidade de Hooper, o poder de ganhar metros de Louw, com um baixo centro de gravidade que o torna um placador devastador, Armitage é um terceira linha fenomenal. Como pode Lancaster deixar este craque de fora das suas escolhas, particularmente quando não tem à sua disposição ninguém com características semelhantes? Armitage é a arma que falta no arsenal inglês.

Na semana em que a Austrália, evidenciando uma enorme dose de bom-senso e pragmatismo, anunciou que Michael Cheika poderá convocar jogadores a jogar no estrangeiro - viabilizando as chamadas de Matt Giteau ou Drew Mitchell, por exemplo - regressaram em força as questões em torno da política de convocatórias inglesa e a ambígua cláusula das "circunstâncias excepcionais". A regra diz que são seleccionáveis os que joguem em Inglaterra; mas o seleccionador pode convocar outros, nomeadamente os que jogam em França, em "circunstâncias excepcionais".

Clive Woodward tem sido um dos mais fervorosos adeptos da cooptação de Armitage, recorrendo a um aforismo que considera insofismável: a selecção tem de contar com os melhores, e Armitage é o melhor na posição; acresce que, em ano de Mundial, estão reunidas as tais "circunstâncias excepcionais" que justificam a derrogação da regra. Woodward apresenta uma argumentação convincente. Contudo, parece-me que ignora - voluntariamente - as diversas implicações que a decisão de Lancaster acarreta e que extravasam o mero aspecto desportivo. 

A questão do tecto salarial na Premiership está na ordem do dia, e agora que os Franceses "perderam a cabeça" em matéria de remunerações, uma loucura possibilitada pelas chorudas receitas advenientes do novo contrato de direitos de transmissão TV, a eventual chamada de Armitage ou de Abendanon daria um forte impulso ao encantamento e sedução exercido pelo "joi de vivre" sobre os internacionais ingleses. Esta perspectiva de depauperamento do campeonato Inglês não terá grande interesse estratégico para os patrões de Lancaster...

Por outro lado, Woodward urde a sua teia em torno da noção de resultado, lembrando que os treinadores são exclusivamente julgados em função das vitórias. Terá razão, mas uma andorinha não faz a primavera (leia-se um jogador não faz uma equipa) e alguns dos actuais internacionais - Tom Youngs e Wood, nomeadamente - não se coibiram de manifestar a sua discordância face à eventual convocatória de jogadores a jogar no além fronteiras, sugerindo inclusivamente que a chegada de um "estrangeiro" poderia ter consequências na moral da equipa. Sobre esta intervenção com tonalidades de ultimatum, Drew Michell apresentou um argumentário que deveria ser objecto de reflexão em Twickenham: se a cultura é efectivamente forte, a integração de um ou dois jogadores não a colocaria em causa, correcto?

Parece-me que a questão acaba por ser simples. Armitage só não será convocado por uma de duas pessoas: Lancaster treinador ou Lancaster dirigente. Parece-me que pensar-se que neste momento é o treinador que decide é ignorar o fundamento da questão, e chega a ser insultuoso para um homem da estatura de Lancaster.

Quando chegou à selecção, Stuart Lancaster deparou-se com um grupo partido, sem líderes nem resultados desportivos, que destacava-se apenas pelos escândalos acumulados: lançamento de anões, alegadas infidelidades envolvendo o capitão e uma princesa do Reino, mergulhos durante uma viagem de ferry em Auckland e umas "orelhas de coelho" oferecidas ao primeiro ministro David Cameron, por ocasião duma fotografia oficial. Evidências inequívocas da "cambada de bêbados", egoístas, irresponsáveis e imaturos, que por acaso equipavam com a rosa ao peito. Em muito pouco tempo, Lancaster revolucionou a cultura da equipa e varreu a "bandalheira". Os jogadores passaram a respeitáveis e respeitados, rigorosos e educados, porta-estandartes da forma correcta de estar neste desporto, sem escândalos e com compromisso, esforço e talento. Durante este processo, é natural que Lancaster tenha feito juras de fidelidade que não pode agora quebrar; terá sido essa a forma de convencer alguns  rufias - Hartley, Mike Brown, Tuilagui, etc. - a personificar o seu ethos, a nova ordem da rosa. Porém, as juras têm um limite. Nenhum treinador no mundo promete a um grupo que não escolherá em função do rendimento, da qualidade humana, física, táctica e técnica, do nível de integração no grupo, da mesma forma que nenhum treinador diz a um jogador que ele fará parte da equipa, independentemente da sua contribuição. E Armitage, a priori, não teve sequer oportunidade para demonstrar incapacidade para integrar a equipa, aceitando os seus valores e regras. Lancaster, o treinador, jamais deixará Armitage de fora dos eleitos para o Mundial.

Mas na sua condição de comandante do rugby inglês, Lancaster é mais que um mero treinador; é também um homem cujas decisões têm um impacto na forma de governação da modalidade em Inglaterra. Pensemos no seguinte silogismo:
a) - Lancaster convoca Armitage para o Campeonato do Mundo;
b) - em 2015/16, cerca de 15 a 20 jogadores internacionais ingleses mudam-se para França, onde encontram contratos chorudos;
c) - a Aviva Premiership perde qualidade, número de espectadores e as receitas publicitárias associadas à venda dos respectivos direitos TV descem a pique;
d) - os clubes da Aviva pressionam a RFU, federação inglesa, para abolir o tecto salarial, conseguindo assim atrair os melhores talentos do mundo, provenientes da Nova Zelândia, Austrália, África do Sul ou Argentina;
e) - com a chegada em massa de talento estrangeiro, o número de jogadores qualificados para representar a selecção inglesa presentes nas listas de jogadores da Aviva Premiership sofre uma redução significativa;
f) - pressionados pelos orçamentos cada vez mais elevados (fruto dos aumentos salariais), os clubes forçam a RFU a aceitar a abolição do sistema de promoção/despromoção com o Championship (segunda divisão), garantido assim que os investimentos realizados são feitos num contexto económico estável;
g) - Rob Andrew, director de rugby professional da RFU, queixa-se que a qualidade de jogo da selecção inglesa está a diminuir, em resultado do cada vez menor número de jovens jogadores ingleses presentes na Aviva Premiership.

O exercício anterior, que é neste momento pura ficção, será a realidade provável caso Lancaster convoque Armitage ou Abendanon. Por isso, as críticas dirigidas a Lancaster, que do ponto de vista desportivo são no mínimo atendíveis, não têm em consideração aquele que julgo ser o seu real fundamento. Em última análise, a decisão nem sequer é de Lancaster, que não obstante fica colado a uma injustiça tremenda relativa a um dos melhores jogadores da actualidade.

P.S. - Armitage saiu de Inglaterra em 2010 e não era, na altura, o jogador que hoje é. Abendanon saiu este ano e mostra as mesmíssimas qualidades e defeitos que o elevaram à condição de internacional e num dos mais entusiasmantes jogadores ingleses, mas também um dos menos consistentes defensivamente. Não existe no grupo às ordens de Lancaster um jogador com as características de Armitage, ao passo que Mike Brown e sobretudo Anthony Watson são dois defesas com reconhecida capacidade atacante, no contra-ataque e defensiva. Por isso considero que as duas situações são profundamente distintas.


quinta-feira, 12 de março de 2015

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Os Polivalentes

Um querido amigo, magnífico treinador e excelente líder, o João Pedro Varela, recomendou-me o livro “Wooden on Leadership: How to Create a Winning Organization”, colocando-me dessa forma na rota dos processos de liderança propugnados por treinadores de basquetebol, primeiro norte-americanos e mais recentemente nacionais também – tive o imenso prazer de conhecer, no final de 2014, o Professor Jorge Araújo, cuja magnífica obra deixará um legado de excelência.

Nesta caminhada, foi-me dada a ler uma entrevista a Mike Krzyzewski, o “Coach K”, treinador da equipa universitária de basquetebol de Duke há 31 anos e dono de um currículo invejável, que inclui trabalho titulado com o “Dream Team” de 1992, que incluía Jordan, Larry Bird ou Magic Jonhson, e ainda a equipa Olímpica norte-americana de 2012, que apresentava Kobe Bryant e LeBron James. A entrevista, cuja leitura é altamente recomendada, deixa clara uma ideia que Wooden introduzira e que os All Blacks transformaram em mantra inderrogável: melhores pessoas resultam em melhores jogadores. E por isso, a entrevista do “Coach K” deixa transpirar alguns dos princípios da sua liderança:
  • responsabilização dos jogadores: inclusão dos jogadores nos processos de definição dos princípios que orientam o ambiente da equipa, por oposição à imposição de regras que resultam da visão do treinador; 
  • preocupação com o carácter do jogador: vida familiar, hábitos alimentares, de saúde e alimentação, relações de amizade, rendimento escolar ou profissional, etc. A vertente técnica e táctica é apenas uma dimensão da avaliação, e não necessariamente a mais relevante; 
  • fomento de um ambiente de felicidade competitiva, em que coexistem a responsabilidade e o prazer de jogar e pertencer, por oposição à limitação imposta pela pressão que resulta, natural e inelutavelmente, da paradigma competitivo assente na vitória e derrota, no céu e no inferno.
Dei por mim a pensar que um dos maiores desafios na gestão de uma equipa é o da justiça, esse conceito forçosamente relativo, que assume tonalidades e matizes distintas consoante os olhos em que se projecta. E se os princípios – “standards”, critérios – ajudam o treinador a resolver virtualmente todas as situações de conflito, sobretudo se decididos e supervisionados pelos líderes do grupo, existe um dilema em que o ambiente, por mais saudável que seja, não exonera o treinador da sua função: a eleição dos que jogam. Um drama temido ou desejado, consoante represente a penúria ou sobejidão de opções, mas que o deixa só perante os sujeitos do seu arbítrio. E neste âmbito, os polivalentes surgem como o magno drama do talento.

Em 2011, quando treinava o CDUL, foi-nos oferecido um jogador com um currículo que não devia enganar: capitão de equipa de uma província neozelandesa, várias épocas de ITM, idade que indiciava experiência q.b. e ainda o fogo de superação, uma presença física assinalável. No entanto, decidimos contra a sua vinda. Estávamos à procura de um segunda linha, um saltador, e o jogador em questão podia jogar na primeira e na segunda. Não consigo explicá-lo de outra forma; quando me apresentaram um jogador como sendo capaz de desempenhar, adequadamente, duas funções distintas (sobretudo nas fases estáticas, em que as exigências específicas da posição são significativamente dispares), não acreditei que o pudesse fazer, ainda que tivesse um registo de competência num campeonato com muito maior qualidade que o nosso. Olhando para trás, vejo que muito provavelmente cometemos um tremendo erro, ao sermos vítimas do preconceito associado à polivalência. O Ruben Amorim, no futebol, queixa-se de algo semelhante...

Talvez esta nossa desconfiança subliminar, intuitiva, inconsciente, radique na visão que temos sobre os multifacetados, não apenas no desporto. Quantas pessoas conhecemos com talento para escrever, cantar, fazer contas, organizar eventos e jogar um desporto qualquer? E quantas vezes não acusamos esta mesma pessoa de dispersão, de tentar fazer um pouco de tudo sem nunca chegar a fazer nada verdadeiramente bem? Não pretendo entrar numa discussão do que está certo ou errado, porque há muito que vou compreendendo que a métrica do sucesso não obedece, inevitavelmente, à escala dos euros. Mas do ponto de vista da execução técnica e táctica, sobretudo em ambientes de pressão, talvez esta desconfiança tenha alguma razão de ser. As pessoas que fazem de tudo um pouco são, tendencialmente, demasiado felizes para se preocuparem excessivamente com o resultado numérico, final, mensurável. E o desporto não comporta a noção de vitória moral. Warren Gatland, um convertido a estas coisas da inclusão responsabilizante, assinala esta ambiguidade intrínseca do desporto de alta competição de forma desassombrada, numa entrevista recente. No fim de contas, o treinador escolherá, entre o romântico e o pragmático, o segundo em nome da ditadura do resultado. "I like winning. I don't believe in the bull of playing well and losing, I'd rather play like crap and win a game any day of the week." Gatland dixit. (Nunca dependi do treino para viver, por isso parte da minha alma de treinador reside ainda no campo romântico. Mas falta-me a legitimidade de quem tudo venceu).

Lembro-me, por exemplo, do Carl Murray, que pode jogar de 10 a 15 na linha atrasada de qualquer equipa nacional (e jogou pela Selecção Nacional a 12 e 13, pelo CDUL recentemente a 13 e 15), mas que comigo nunca foi outra coisa que não um 15. Lembro-me, também, de um Nuno Penha e Costa regressado, em 2011, de alguns meses de Bay of Plenty e com um “andamento” extraterrestre. Ele, que saíra de Portugal como um 15, foi durante larga parte de 2011/12 um 10 que revolucionou a estrutura atacante do CDUL, com a sua capacidade de decisão notável. Mas só o foi porque um não menos notável Pedro Cabral começou a época lesionado e não havia alternativa viável. A necessidade derrotou a minha incompetência desconfiada. O Nuno acabou por regressar ao três de trás, quando o Pedro recuperou a forma que o transformou num “abertura” sem paralelo na capacidade de resolver, a nível do CDUL e também da Selecção.

A resposta é, como em tudo, simples: o critério tem de ser, sempre, o da qualidade. Se um jogador tem capacidade para desempenhar várias funções e papéis num esquema táctico, deve ser recompensado pelo facto, e nunca castigado. Se algum dia voltar a treinar, tentarei melhorar também neste aspecto. Afinal, como diz o “Coach K”, o treino vicia porque ao tentarmos melhorar os nossos jogadores, estamos inexoravelmente comprometidos com o processo de nos melhorarmos a nós mesmos.


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

sábado, 19 de julho de 2014

Formar para vencer



http://www.rfu.com/ruckley/~/media/Images/2013/Ruckley/Play_rugby_250.ashx

É uma inevitabilidade: andamos no desporto de competição para vencer. Nesse aspecto, é um pouco como a política (já regresso a este ponto). E tudo o que é feito numa organização desportiva tem como fito último a vitória, mesmo no caso das organizações que valorizam o processo em detrimento do resultado – fazem-no, na sua maioria e paradoxalmente, porque acreditam que ao valorizar o processo, ficam mais próximos de alcançar o resultado. Por processo entenda-se não só os procedimentos, mas também o conjunto de normas que regem toda a conduta dos membros integrantes, i.e. a cultura da equipa.

O imperativo da vitória

A verdade, porém, é que o desporto competitivo não admite a sobrevivência de processos que redundem, sucessiva e maioritariamente, em derrotas. É claro que a noção de vitória varia consoante a organização – para uns serão títulos, para outros classificações meritórias (pelo menos até ao momento em que estas sejam em número tal que os títulos passem a ser exigidos), para outros ainda resultados financeiros associados à exploração da actividade desportiva. De todo o modo, é de vitória que falamos em competição, independentemente do significado circunstancial.

Contratar ou formar?

A questão da formação de jogadores está em voga (no rugby, seguramente, mas também no futebol), e está intimamente relacionada com este paradigma existencial do desporto competitivo. Para vencer precisamos de jogadores; que por sua vez terão de ser angariados/contratados, ou formados. Note-se que a formação não exclui – deve, aliás, atender e entender – esse maravilhoso e aberrante fenómeno da geração espontânea, que permite que miúdos que jogaram toda a vida descalços, com cocos ou amontoados de papel colado no lugar de bola, em pelados invadidos por crateras e calhaus, sejam hoje o Samuel Eto’o ou o Rupeni Cacaunibuca.

Se a contratação apresenta a vantagem de não exigir estrutura significativa, na medida em que meia dúzia de olheiros “varrem” o globo com recurso às actuais e inúmeras ferramentas tecnológicas, nem outro investimento que não seja o correspondente à eventual aquisição de direitos desportivos, encerra um risco significativo, já que a observação não nos oferece garantias quanto ao tipo de jogador que estamos a recrutar para a nossa organização, e muito menos o tipo de pessoa. Basta recuperar, como demonstração, as memórias de incontáveis expectativas frustradas com contratações de jogadores, que se revelaram um flop.

Inversamente, o processo formativo permite que acompanhemos o desenvolvimento das vertentes motoras, técnicas e tácticas do jogador, fomentando, crítica e essencialmente, a identificação com a cultura do clube. Contudo, a formação exige um investimento apreciável, sobretudo em pessoas – e não tanto em infraestruturas, contrariamente à crença popular – que tem retorno variável e inevitavelmente a longo prazo.

Risco e recompensa

Sobre o rácio risco/recompensa falarão com maior propriedade os economistas, que reduzem praticamente tudo a números, e o desporto também. Recordo o furor causado nas massas pelo Moneyball, que encontra paralelo na obsessão analítica em voga nos anos ’90, com a introdução dos softwares de análise de jogo. O desporto não se contém em números ou estatísticas, mas seria estúpido ignorar a boa informação que a matemática analítica nos oferece.

Quando se contrapõe formação a contratação, referimo-nos essencialmente a risco e recompensa. Compreende-se a dificuldade de afirmação das valências da formação, como ferramenta primordial de recrutamento e composição de um plantel. Primeiro, porque os treinadores têm ciclos nas equipas – como os políticos, nos cargos que ocupam – e sentem a necessidade, largamente injustificada, de apostar em gente que conhecem, “batida” e que apresente resultados imediatos; injustificada porque não existe no mundo calculadora capaz de enumerar as contratações falhadas, algumas pagas a peso de ouro. Para estes, a aposta nos miúdos fica para depois, para alguém que “feche a porta”; as semelhanças com a política são recorrentes.

No entanto, estou convencido que o facto que concorre primordialmente para a desvalorização do processo formativo é a circunstância das organizações valorizarem sobretudo – e porventura unicamente – a contribuição técnica e táctica do jogador, sem consideração pelo carácter, temperamento e adequação à cultura da organização. É claro que com “coxos” ninguém ganha, mas sou dos que acredita que não basta saber chutar, passar e placar. Um bom jogador tem de ser, como recordou com perspicácia o Francisco Pereira Branco no P3, acima de tudo, ainda melhor pessoa. Enquanto não for outorgada dimensão crítica ao ethos, a formação será sempre um expediente para “inglês ver”, ou para cumprimento de coloridas regras ad hoc, algures entre os jogadores formados localmente da UE e as quotas raciais na África do Sul (não se leia neste apontamento qualquer crítica a estas regras, que podem até ser necessárias; lamenta-se apenas que o estado de coisas exija que alguém a pense).

Apenas a vitória

Não proponho que se defenda nada mais que a vitória. Acredito que o caminho mais sustentável para lá chegar é através da formação de culturas fortes, assentes na integridade, qualidade motora, técnica e táctica, que por sua vez exige uma aposta forte na qualificação de quadros formadores, que resultarão em melhores jogadores e melhores pessoas. O recrutamento terá sempre um papel complementar, importante.

A Alemanha campeã do mundo anda desde o início do século a pensar nestas coisas, com o sucesso que se conhece (uma liga profissional com estádios cheios, lucrativa, níveis de participação em máximos históricos, o quarto campeonato do mundo). 

Talvez tenhamos investido demasiado tempo e – não nos iludamos – dinheiro em apenas parte da equação. O problema maior é que não se vislumbra, no rugby como no futebol, quem se preocupe em caracterizar o contexto, em identificar virtudes e faltas, em apresentar e discutir soluções. Estamos sempre a tempo.